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E agora, o que fará o Reino Unido?

06/07/16 – Carta Capital
E agora, o que fará o Reino Unido?

Ninguém se preparou para a vitória do Brexit, uma surpresa para seus próprios partidários

Geoff Caddick/AFP

Líderes europeus em Bruxelas

Em meio à perplexidade geral, Cameron despediu-se dos líderes europeus em Bruxelas

O mais notável não é a vitória do Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia), mas a surpresa dos supostamente bem informados. À parte as pesquisas terem errado seriamente nas eleições de 2015, em média apontavam para um empate técnico.

Mesmo assim, mas ao se iniciar a contagem, as casas de apostas britânicas registravam 83% pelo Remain e o próprio Nigel Farage, líder do xenófobo Ukip, “Partido da Independência do Reino Unido”, admitia a derrota e se consolava com a esperança de crescimento futuro do seu movimento. 

Cerca de 100 milhões de libras mudaram de mãos dessa forma, segundo os corretores. Um valor insignificante em comparação com as apostas das bolsas e dos mercados cambiais, que perderam 3 trilhões de dólares em dois dias.

A libra esterlina subira de 1,39 na véspera para 1,50 dólar na noite fatídica, mas perdeu o chão à meia-noite, ao sair o resultado de Sunderland, quinto dos 382 distritos e o primeiro a ter um resultado pelo Brexit muito superior ao esperado.

Às 3 da madrugada, a libra caíra para 1,33 dólar, um colapso sem precedentes desde o início do câmbio flutuante em 1970. A maioria dos analistas espera vê-la se estabilizar entre 1,20 e 1,30 dólar, mas há quem aposte que cairá para 1 dólar no fim de 2016.  

O Credit Suisse revisou sua previsão para o PIB britânico de crescimento de 2,3% para queda de 1%. A expectativa de inflação em 2016, que era de 1% a 1,5%, saltou para 4% e impacta alimentos e roupas, em grande parte importados da Europa.

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Sturgeon testava a receptividade a uma Escócia independente para sua vaga (Foto: Wiktor Dabkowski/AFP)

Ao considerar apenas indícios e pesquisas que pareciam confirmar seus desejos e convicções, as elites financeiras se mostraram tão vulneráveis quanto qualquer um de nós às miragens do pensamento positivo e da atenção seletiva.  Ilusões particularmente fortes neste caso que desafia um quarto de século de fé na irreversibilidade da União Europeia e da globalização.

Barack Obama quis jogar água na fervura: “Houve certa histeria após a votação do Brexit, como se já não houvesse Otan e cada país tivesse ido para o seu canto. Não foi o que aconteceu”. É claro que não, mas o mero fato de ser cogitado é sintomático.

O conhecido politólogo estadunidense Ian Bremmer vê nesse o “maior evento a ameaçar a ordem mundial liderada pelos Estados Unidos desde a crise dos mísseis de Cuba de 1962”, seguido pela crise financeira de 2008 e pela reação ao 11 de Setembro.

De um ponto de vista menos Washingtoncêntrico, é preciso dar no mínimo igual relevância à dissolução da União Soviética, iniciada com a proclamação da independência da Lituânia em fevereiro de 1990, concluída em dezembro de 1991 e pressagiada pelo desastre de Chernobyl tanto quanto a atual crise foi anunciada pela falência do Banco Lehman Brothers.BrexitLogo após fecharem as urnas, Farage já admitia a derrota, e ficou tão surpreso quanto qualquer outro com a virada (Fotos: Thierry Charlie/AFP e Michael Kappele/AFP)

Se aquela convulsão serviu, ao menos no primeiro momento, para derrubar barreiras, a nova destina-se desde o primeiro momento a reerguê-las.

A esquerda radical ou populista a ver nessa ruptura inspirada pela xenofobia o prelúdio de conquistas e vitórias se ilude ainda mais que os trotskistas que viam na rebelião de Lech Walesa o caminho para o socialismo verdadeiro.

Alguns xenófobos entusiasmados comemoraram a vitória atacando e ameaçando imigrantes, mais notadamente os poloneses, chamados de “praga” em panfletos espalhados pelos bairros onde moram e cujo centro cultural foi pichado em Londres. Mas suas lideranças parecem tão perplexas quanto os globalistas. Se Bruxelas e Washington não tinham um plano B, tampouco os eurocéticos.

O primeiro-ministro David Cameron renunciou e a União Europeia, pelas vozes de Angela Merkel, François Hollande, Matteo Renzi e Jean-Claude Juncker, cobra agilidade na formalização do pedido de saída e definição do novo governo para iniciar o quanto antes a negociação dos termos da saída, com prazo máximo de dois anos para se encerrar.

Entretanto, Boris Johnson, principal líder do Brexit e de início tido como o sucessor certo de Cameron, insistiu em que “não há pressa”. Outras figuras do Brexit trataram de baixar as expectativas dos seus seguidores. Prometer que sair da UE liberaria 350 milhões de libras semanais para o sistema de saúde foi um erro, admite agora Farage.

Mentira consciente, como diziam desde o início os adversários. O conservador Daniel Hannan, outro dos mais conhecidos defensores da saída, surpreendeu os seguidores: “Se pensavam zerar a imigração, ficarão desapontados. Fui por mais controle, não por imigração mínima”. 

A maior parte do voto no Brexit veio de aposentados e trabalhadores mais velhos de regiões decadentes que recebem menos imigrantes e mais ajuda europeia do que as cidades cosmopolitas onde venceu o Remain (em Londres, por 60%).

São nostálgicos do pleno emprego e bem-estar social dos tempos anteriores à globalização e à UE, mas foram liderados por adeptos de Margaret Thatcher que, como ela, são mais responsáveis pelas reformas neoliberais e suas consequências do que Bruxelas e sonham com um paraíso fiscal livre de diretrizes europeias sobre impostos, transparência, direitos humanos, migração, ambiente, proteção de consumidores e normas trabalhistas.

Johnson

Após liderar o Brexit, Johnson exime-se de arrumar a bagunça (Foto: Leon Neal/AFP)

Entretanto, para manter a liberdade de movimento e trabalho dos cidadãos britânicos na Europa e uma associação de livre-comércio com a UE, para onde vão 51% de bens, 42% dos serviços financeiros e 19% dos seguros britânicos exportados, será preciso aceitar a livre movimentação de cidadãos europeus e a maior parte dos custos e obrigações, mesmo sem ter altos funcionários em Bruxelas ou votos em Estrasburgo. Pode não ser fácil de explicar.

Não há, porém, como voltar atrás. A mídia entrevistou vários arrependidos de terem votado pelo Brexit, mas são raros, segundo as pesquisas. Repetir o referendo terá o mesmo resultado, ao menos enquanto os eleitores não sentirem efeitos desfavoráveis na pele.

Teoricamente, o Parlamento poderia ignorar o resultado, como quis o jurista Geoffrey Robertson no Guardian, mas seria desmoralizador para as instituições e os partidos.

Faça-se ressalva à Escócia, onde o Remain teve 62% (ante 47% na Inglaterra e Gales) e o governo de Nicola Sturgeon quer um referendo para sair do Reino Unido e permanecer na União Europeia. O maior obstáculo é Madri. Mariano Rajoy veta a hipótese por incentivar seus próprios separatistas, embora lidere um governo precário.

Gove e May

Gove, o mais importante ministro pró-Brexit de Cameron, quer ser seu sucessor, mas May, anti-Brexit, propõe-se a governar contra a própria convicção (Fotos: Mary Turner/AFP e Justin Tallis/AFP)

A ameaça de desintegração pende também sobre os partidos tradicionais, principalmente o Trabalhista. Assim como a maioria dos seus parlamentares (218 a 10), o líder Jeremy Corbyn, da ala esquerda, apoiou o Remain, mas a ala “social-liberal” de Tony Blair, que domina a cúpula e nunca o apoiou, usa a derrota para culpar sua “falta de liderança” e exigir sua renúncia.

A maioria dos ministros do “governo paralelo” renunciou e os deputados trabalhistas aprovaram uma “moção de desconfiança” (sem valor legal) por 172 votos a 40.  Corbyn, apoiado pelas bases que o elegeram em primeiro turno, está disposto a resistir e é possível que os dissidentes fundem um novo partido. Se vier uma nova eleição este ano, essa divisão daria ampla maioria parlamentar para os conservadores eurocéticos e o Ukip.

Entretanto, entre os conservadores, a ministra do Interior, Theresa May, partidária do Remain, candidatou-se a suceder Cameron como líder do partido e do governo. Para surpresa geral, o ministro da Justiça, Michael Gove, principal nome do Brexit dentro do governo Cameron, também se candidatou e Johnson declinou.

A disputa pode ser resolvida dentro do partido, dispensar as urnas e permitir aos atuais integrantes da Câmara (479 a 158 pró-Remain, 185 a 138 dentro do próprio Partido Conservador) ficar até 2020.

Mas após uma decisão tão drástica e irreversível quanto o Brexit, soa como contrassenso e cinismo o país ser relutantemente conduzido ao novo rumo por seus oponentes em nome da estabilidade.

Mais importante são, porém, as reações políticas e econômicas na UE. Outrora muitos europeístas teriam festejado a saída do Reino Unido, eterno entrave a uma cooperação mais estreita, mas hoje o quadro é diferente.

Cúpula trabalhista

A cúpula trabalhista quer aproveitar a crise para ejetar Corbyn, mas a militância o apoia

Bruxelas enfrenta um difícil dilema: se for dura com Londres, terá perdas comerciais (principalmente de exportadores alemães e holandeses) e mais instabilidade financeira, mas se for condescendente, encoraja partidos xenófobos e antieuropeus em ascensão em vários países da Europa e já no poder na Hungria e Polônia.

Há sério risco político de desmembramento e grave risco econômico e financeiro ao euro e ao combalido sistema bancário, principalmente na Itália, onde já se prepara um resgate bancário de 40 bilhões de euros. As ações dos dois maiores bancos caíram quase 30% após o Brexit e mais de 60% desde o início do ano.

Em 1931, quando o Reino Unido deixou o padrão-ouro e desvalorizou a libra, as demais nações europeias a imitaram e uma após a outra aderiram ao nacionalismo econômico, quando não ao fascismo.

Londres não é hoje tão importante, mas a política e as finanças europeias não estão em melhor forma e o susto pode se repetir nos EUA, onde Trump é impulsionado por uma dinâmica semelhante à do Brexit e liberais demasiado confiantes na irreversibilidade da globalização podem ser de novo apanhados de calças curtas.

*Reportagem publicada originalmente na edição 908 de CartaCapital, com o título “E agora, John?”

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