Carta Capital – 30/07/2014
Problema político
acelerar o crescimento sem regressão distributiva
Venceu o prazo de validade da ingênua ideia de que, na construção do mundo, Deus lembrou-se dos economistas (como fez com os físicos) e deu-lhes um pedaço da realidade razoavelmente bem ordenada: à ciência econômica caberia descobrir que o bom funcionamento dos mercados, além de produzir uma eficiente alocação dos escassos fatores de produção e coordenar as respostas às demandas de milhões de consumidores, forneceria ainda um mecanismo distributivo, objetivo e “justo” por intermédio da equivalência entre o valor da produtividade física marginal do trabalho e o valor do salário do trabalhador. Nesse mundo, cada trabalhador tinha a “justa” devolução da sua contribuição à produção. A diferença entre o valor adicionado de toda a produção e a soma dos “justos” salários seria, por definição, a “justa” remuneração do capital…
Tratava-se, obviamente, de pura construção ideológica para proteger uma armação, cuja lógica tinha muito pouco a ver com a realidade. Reconhecer as virtudes inegáveis de organização da produção por meio dos mercados para obter ao mesmo tempo a plena liberdade de escolha dos cidadãos e uma certa eficiência produtiva, não obriga à aceitação que ela produz, simultaneamente, uma “justa” e irrecorrível distribuição de renda (isto é, do que foi produzido). A organização dos trabalhadores e a conquista do sufrágio universal entre o fim do século XIX e o início do XX reduziram as diferenças de poder político entre o capital e o trabalho e deixaram claro que a distribuição do produzido é um problema político que tem implicações econômicas de longo prazo.
E hoje está claro que se trata de escolha ideológica do grupo que detém o poder político. Para simplificar podemos dividi-los em dois. 1. Um, que acredita no Estado com poder limitado que não pode determinar a evolução da distribuição de renda. Ela é produto da propriedade privada, que é a garantia da liberdade individual, produz a eficiência produtiva pela proteção aos “mercados” e gera a meritocracia na distribuição da renda. 2. Outro, que acredita que a produção é feita por todos e, portanto, deve ser repartida igualmente, sem preocupar-se com a liberdade individual.
São duas visões antagônicas que, na melhor das hipóteses, só podem ser relativamente conciliadas pela aceitação de uma lógica consequencialista: qual delas é mais favorável a um crescimento robusto com uma distribuição de renda que cresça monotonicamente para um nível moralmente aceitável? Como uma questão de fato, só pode ser resolvida empiricamente. O problema é que sabemos muito pouco a respeito dos efeitos recíprocos do crescimento apoiado na organização dos mercados e o nível de “bem-estar” (uma espécie de “felicidade” da população) que produz cada combinação: velocidade do crescimento vs. velocidade da redução da desigualdade. Não se conhece a “preferência” da sociedade, isto é, quanto ela está disposta a ceder de crescimento (de investimento que reduz o “bem-estar” a longo prazo) por causa de uma diminuição da desigualdade (que aumenta o “bem-estar” a curto prazo).
Entre 2003 e 2010, tivemos um bônus do exterior (a melhora das relações de troca) que aumentou o PIB e possibilitou a distribuição sem comprometer o crescimento. Mas isso terminou em 2011, o que ajuda a entender parte da redução do crescimento dos últimos quatro anos. A situação hoje é outra. Precisamos de uma crível, bem focada e previsível política econômica e social que, sem nos levar à regressão distributiva, dê ênfase aos investimentos públicos e privados para acelerar o crescimento, condição necessária para continuar a construção da sociedade civilizada preconizada pela Constituição de 1988.
Há outro problema grave. A revolução demográfica que vivemos condicionará toda a nossa política social e econômica futura. Quando diminui, como agora, o aumento da mão de obra, a única forma de crescer é aumentar a sua produtividade pela ampliação do estoque de capital a serviço de cada trabalhador.